sábado, 9 de março de 2013

VIVENDO COM 80 LITROS DE LEITE POR DIA EM 21 DE SETEMBRO DE 2001

Confira: vivendo com 80 litros de leite por dia

postado em 21/09/2001

Dando seqüência à entrevista passada, quando o MilkPoint entrevistou um produtor informal, desta vez a equipe foi a campo conhecer a realidade do pequeno produtor de leite. Orlando Martins da Cunha, produtor de leite no interior paulista, entrega seu leite a um laticínio regional. Ele vive com o que arrecada com a venda formal de 80 litros de leite por dia. Encontramos uma pessoa simples, mas esclarecida, que procura se viabilizar como produtor e manter uma vida mais digna e saudável daquela que teria na cidade.

Participaram das duas entrevistas Marcelo Pereira de Carvalho, do MilkPoint, o Prof. Luis Fernando Laranja da Fonseca, da FMVZ-USP, e o médico veterinário Alexandre Olival.


MP: O que representa produzir leite neste sítio?

OMC: Representa o sustento de minha família, pois há 15 anos tiro leite. Se eu parar, vou fazer o quê ? Conheço várias pessoas que saíram do campo, foram para a cidade e se perderam na vida. Achavam que iam arrumar emprego, tinham ilusão de uma vida melhor. Mas poucos conseguem isso, a decepção é muito grande. Outro dia estava cortando o cabelo no barbeiro, na cidade, e reparei que todos estavam reclamando do dinheiro, das dificuldades, da falta de emprego. O problema não é só meu.

MP: Quem toca o sítio?

OMC: Eu, com alguma ajuda da minha irmã, que mora ali naquela casa com minha mãe (aponta a casa da mãe, embora antiga, um boa residência). Eu tenho 3 filhos. Meu mais velho tem 18 anos e estudou até a sétima série, depois quis parar. Está procurando emprego. Os outros dois estão na escola. Aqui só não estuda quem não quer, porque tem vaga, material e condução gratuita até lá. O único problema é ter de levantar às 5 horas da manhã para pegar o ônibus, mas fora isto, não tem do que reclamar não.

MP: Como é a sua rotina diária?

OMC: Às 4:30 da manhã eu começo. Eu estou no começo da linha de leite, então tenho que ordenhar cedo as vacas. Há não muito tempo atrás, uns 2 anos, tinha bem mais pequenos produtores aqui perto, uns 10 produtores (ele aponta para onde ficavam seus vizinhos). Nesta época, era mais fácil. Hoje, pequeno produtor aqui são só eu e um outro, que tem 2 alqueires de terra e umas 15 vacas, mas ele faz queijo e entrega na cidade (informal), porque fez as contas e achou que era melhor do que entregar para o laticínio.

MP: E porque você não faz o mesmo ?

OMC: Eu cheguei a fazer, e estava indo bem, fizemos curso para aprender, mas de repente começou a dar um gosto ruim no queijo, amargo, que não dá para comer. Daí pensei, não vou vender uma coisa que eu não consigo comer. Eu sempre provo primeiro; se não aprovar, eu não vou vender para outro. Não consegui descobrir ainda o que é que ocorreu, mas nunca mais consegui fazer um queijo bom para venda.

MP: Quantos litros o senhor tira hoje ?

OMC: De 50 a 60 litros por dia, porque as vacas caíram muito com esta seca. No ano passado, nesta época, estava com uns 100, 120 litros por dia. Hoje, tenho muita vaca seca (8 secas) e vaca com bezerro velho, só tenho umas 10 vacas dando leite. No verão do ano passado eu cheguei a 150 litros. Mas acho que vai melhorar, porque aquela vaca ali, por exemplo, criou há 30 dias e o boi já cobriu; tenho muita vaca mojando.

Touro
Seu Orlando e o seu touro gir


MP: Como é a alimentação do rebanho ?

OMC: As vacas comem aquela capineira (mostra o capim elefante, passado, que é cortado diariamente pelo proprietário), um pouquinho de cama de frango e o resto é uma mistura de farelinho de trigo e de algodão, na base de 1 kg por vaca. A média hoje por vaca é 5 a 6 litros por vaca, em 2 ordenhas. Tenho também uma área de cana que vou usar. De capim elefante e de cana, tenho um total de 1 alqueire.

MP: Mas como você mantém o leite da ordenha da tarde, sem estragar ?

OMC: Eu coloco no freezer. O laticínio mesmo que me incentivou a fazer duas ordenhas e fazer desta forma. Como não é muito leite, dá para fazer assim. Se aumentar a produção, daí vou ter que ver um outro jeito de armazenar o leite.

Casa
Vista do gado e da residência do seu Orlando


MP: Quais são as opções para entrega do leite aqui na região ?

OMC: A gente entregava para um laticínio em outra cidade, uma cooperativa, até que um dia eles vieram aqui e disseram que não ia mais pegar nosso leite. Eles chegaram a ter menos de 300 litros para pegar por aqui, não compensava mais. Isto foi muito difícil para nós, porque meu pai entregava para esta cooperativa há 30 anos e de uma hora para outra, ficamos sem opção. Hoje, entregamos em um laticínio particular, e a linha de leite cresceu, já são 2000 litros. Se fosse hoje, a cooperativa não iria parar de pegar nosso leite. A gente tem opção de mais dois laticínios pequenos aqui na região.

MP: O laticínio tem apertado a qualidade do leite ?

OMC: Tem, até teve uma reunião ontem, foi uma conversa boa, nós queremos melhorar. Mas tem que aumentar o preço do leite, que está muito baixo. Eu sei que o mercado está ruim, vi na televisão que estão pagando em Goiás R$ 0,27, R$ 0,30 por litro, leite de boa qualidade e em quantidade. Assim não tem condição. O laticínio estava pagando dois centavos por litro acima do que pagou no ano passado, mas caiu.

MP: A sua situação está ficando pior a cada ano?

OMC: Está, porque o custo não acompanha o preço. No ano passado, eu recebi até R$ 0,38 por litro, neste ano já não pegou isto, ficou em R$ 0,36.

MP: Qual é o custo que o senhor tem com as vacas?

OMC: Com 50 litros de leite por dia, ganho um total de R$ 480 por mês, com um preço de R$ 0,32 por litro. Hoje, eu gasto cerca de R$ 450 para tratar do rebanho, vai me sobrar R$ 30 por mês, o que não dá para viver. Eu precisava tirar pelo menos 100 litros por dia, a R$ 0,30, para manter as vacas e a minha casa. Não que seja bom, mas é um valor que dá para continuar. Com o preço e a produção de hoje, tenho que vender uns bezerros para poder viver até que comece a chover. Daí a coisa melhora, pois vem o pasto, as vacas criam e a produção aumenta. Agora, se ficar do jeito que está, não sei se consigo continuar tirando leite.

MP: O senhor vende os bezerros machos?

OMC: Sempre que aperta, eu pego e vendo os machos, na base de um ano de idade, assim que desmamar. Pega uns R$ 150, R$ 180 cada um. Outro dia mesmo, precisei comprar uma picadeira nova para o capim e vendi uns bezerros.

MP: O rebanho está crescendo?

OMC: Não, está ficando igual. A única coisa que eu faço é trocar as vacas, tirando umas mais velhas por outras mais novas. Eu usava um boi holandês, agora estou com um gir, porque desse eu aproveito o leite das vacas e o bezerro. O bezerro macho do holandês não vale nada. Minha bezerrada vai bem, faz 6 anos que não morre um. Pelo menos isto ! Vaca também é raro morrer. No tempo do meu pai, morria alguma na seca, porque quase não se tratava.

Rebanho
Rebanho do seu Orlando


MP: Há quanto tempo o senhor tem este boi gir?

PMC: Há uns 4 anos. Ele é filho de um gir leiteiro, registrado, e está indo bem por aqui.

MP: Mas daqui a pouco ele vai cobrir as filhas, não?

OMC: Já cobriu a irmã, deu um bezerro bom, desenvolvido. Agora, não sei se vou deixar ele cobrir as filhas.

MP: O senhor usa medicamentos?

OMC: Uso, por exemplo, antibióticos, mas o leite da vaca tratada não vai com os outros, porque não acho certo. A única coisa que eu mando leite é com o vermífugo. Isto vai mesmo. Eu trato o gado com Ripercol® e com Lodopec®. Meu gado tem um problema: chega nesta época da seca, incha aqui na goela. Se eu aplico este produto, não acontece mais.

MP: O senhor usa sal mineral para as vacas?

OMC: Uso, bastante. Coloco no cocho, na ordenha. Eu trato o gado duas vezes por dia, agora mesmo vou fechar o gado para tratar.

MP: O senhor tem algum tipo de assistência técnica, por exemplo do governo?

OMC: Olha, até hoje nunca veio ninguém. O veterinário que vinha era um padrinho meu, que não cobrava nada. Mas ele faleceu e agora fiquei sem veterinário.

MP: Mas e se uma vaca ficar doente e o senhor não conseguir resolver?

OMC: Então, aquela vaca ali, criou muito gorda e amanheceu deitada, não levantava mais. O que eu fiz ? Comprei um soro, passei no seu Laércio Pereira (produtor próximo, que é técnico agrícola), pedi para ele me ajudar. Aplicamos o soro, 20 minutos depois ela saiu andando. Quando tranca bezerro na hora de nascer, eu mesmo tiro, com minha irmã ajudando às vezes. Eu me viro. Outro dia veio uma turma de estudante tirar amostra de sangue para brucelose, tuberculose. Levaram o sangue, analisaram, mas não recebi nenhuma informação de volta. Para mim, não serviu para nada, pois fiquei na mesma.

Cocho
Cocho de alimentação e cana, ao fundo


MP: Que maquinário o senhor tem aqui?

OMC: Uma picadeira e um tratorzinho velho, além da caminhonete (uma F-1000 bem rodada). O resto é tudo no braço. O capim eu corto com o facão. Agora, quando eu vou preparar uma terra, a gente arranja um produtor, pede emprestado ou troca serviço. Alugar é muito caro. A hora de um 6300 custa uns R$ 50. Aqui é tudo pequeno produtor, seria bom se a gente tivesse como utilizar maquinário em conjunto. Se tivesse um pouco de união, ia ficar bem mais fácil, mas sempre tem alguém querendo levar vantagem na negociação.

MP: O senhor tem ouvido falar em uma nova legislação para produzir leite?

OMC: O pessoal do laticínio falou que eles vão começar a qualidade do leite. Eu queria saber do laticínio como é que vai funcionar, qual é a higiene que vai precisar. Talvez, se compensar a gente investir no leite, quer dizer, se o preço compensar, a gente arruma um jeito de fazer isto aí que eles querem. Agora, do jeito que está, não compensa. Você gasta nisso um dinheirinho que serve para outra coisa, e depois não recebe nada em troca, fica difícil. É disso que a gente tem medo.

MP: Você consegue dinheiro no banco, ou em programas destinado à agricultura familiar (PRONAF, por exemplo), para investir na sua produção?

OMC: Eu não consigo. A terra aqui não tem escritura, precisaria desmembrar o terreno, que está em condomínio (15 alqueires), mas nem minha mãe nem a pessoa que comprou parte de nossa terra quer fazer, porque ele tem interesse em comprar mais e fazer tudo de uma vez. Eu também não gosto muito de banco. Cresci vendo meu pai pegar dinheiro do banco para plantar milho e algodão, depois pagar juros. Uma vez falei para ele vender umas cabeças de gado para financiar o plantio, para não pagar juros. Deu certo. No segundo ano, nem precisou vender o gado para comprar o adubo, a semente. Daí ele faleceu e precisamos vender as terras.

MP: Você gosta de morar e de trabalhar aqui?

OMC: Eu gosto muito. Meu avô, tinha 600 alqueires de terra, aqui mesmo. Esta região era tudo dele, mas não incentivou os filhos a trabalhar na terra. O único que fez alguma coisa foi meu pai, que ficou com 100 alqueires, mas acabou caindo doente. Toda a área foi sendo vendida, até chegar nisso daí, eu tenho 5 alqueires e minha mãe outro tanto. A gente tem hoje isto daqui porque gosta, se não já tinha vendido também. Um alqueire aqui está valendo uns R$ 15 mil. As crianças gostam também e não querem ouvir falar de vender. O mais novo diz que na cidade ele fica fechado

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