Área isolada da penitenciária fica atrás do muro, onde há apenas uma porta (Foto: Divulgação/Susepe)
Metros de distância separam os quatro investigados pelo envolvimento no
incêndio na boate Kiss, que completa um mês nesta quarta-feira (27).
Eles ocupam três celas em uma área isolada dos demais presos na
Penitenciária Estadual de
Santa Maria, segundo a Superintendência de Serviços Penitenciários (Susepe) do
Rio Grande do Sul.
Um dia após a tragédia, que vitimou 239 pessoas e deixou mais de uma
centena de feridos, os dois sócios-proprietários da boate e dois
integrantes da banda Gurizada Fandangueira, que teriam acionado o
artefato pirotécnico que deu início ao fogo conforme apontam as
investigações, foram presos preventivamente.
Os empresários da noite Mauro Hoffmann e Elissandro, o Kiko,
encontram-se em uma cela individual, sozinhos. O vocalista da banda,
Marcelo de Jesus dos Santos, e o produtor do grupo musical, Luciano
Augusto Bonilha Leão, dividem outra. As celas não ficam lado a lado e
não há contato visual entre eles.
“Um dos empresários está na primeira cela à direita. Os músicos estão
na segunda à esquerda. Mais adiante fica a cela do outro empresário”,
explica o delegado penitenciário regional da Susepe, João Amaral.
A comida dos quatro presos é a mesma dos demais, mas feita em outra
cozinha. Como são os próprios detentos que preparam as refeições, a
administração da penitenciária teve receio de que pudesse haver uma
tentativa de envenenamento. Mas segundo Amaral, não há qualquer tipo de
regalia. “Os ingredientes são os mesmos, e a quantidade também. É a
mesma comida dos funcionários”, diz ele.
Na primeira noite em que chegou, no dia 5 de fevereiro, Kiko ficou
acompanhado de um senhor de idade, também detento. “Ele havia tentado
suicídio no hospital (em Cruz Alta, onde ficou internado sob custódia
policial) e ficamos com medo que ele fizesse alguma bobagem. Então este
senhor se prontificou a ficar junto. Mas no segundo dia ele já saiu de
lá”, relata Amaral.
A prisão temporária dos quatro suspeitos expira no próximo domingo, dia
3 de março. Os delegados Sandro Meinerz e Marcelo Arigony, que estão à
frente da investigação sobre a tragédia, planejavam concluir o inquérito
nesta data, mas podem pedir a prorrogação do prazo. Solicitação que não
pode ser feita em relação à prisão dos envolvidos. A polícia, no
entanto, não descarta pedir a conversão da prisão temporária em
preventiva.
Kiko perdeu oito quilos e tem pesadelos durante a noite
O advogado de Kiko, Jader Marques, diz que o seu cliente só fica ao sol
três vezes por semana, segundas, terças e sextas-feiras, por 20
minutos. Ele também teria perdido cerca de oito quilos desde que
ingressou na penitenciária. “Ele está extremamente magro, e com a pele
muito branca, pálido. O cotidiano dele é passar a maior parte do tempo
deitado”, diz o advogado.
Kiko esteve internado em Cruz Alta antes de ser
levado ao presídio (Foto: Reprodução/TV Globo)
Quando dorme, prossegue o advogado, Kiko costuma ter pesadelos com a
tragédia na casa noturna que administrava. “Ele sonha muito com o
incêndio. Não há uma noite em que ele não tenha o sono agitado”, afirma
Jader Marques.
Nas tardes de quinta-feira e de domingo, o empresário recebe as visitas
da namorada Nathalia Doronche, da mãe e da irmã. A ausência durante o
período de gravidez de Nathalia incomoda o empresário, segundo Marques.
“Quando ela vai embora é a parte mais sofrida”.
Kiko toma remédios psiquiátricos, mas tem tido dificuldades para ter
atendimento devido ao horário de visitas. No entanto, ele é acompanhado
por um psicólogo da Susepe. Marques conta que ele pensa muito nas
vítimas que conhecia. “Todo o tempo ele pensa nos amigos dele que
estavam lá. Morreram pessoas com quem ele tinha amizade, frequentadores
assíduos e funcionários. Alguns eram muito próximos”, diz o advogado.
Mesmo em uma situação difícil, o advogado garante que o empresário está
ansioso para colaborar com a investigação, e disposto a ficar mais 30
dias preso temporariamente (O Ministério Público se posicionou contrário
ao pedido de prorrogação de prisão do advogado). “Ele me pergunta muito
sobre como está a situação, e se frustra quando ouve as respostas. Ele
quer acarear e prestar um novo depoimento. Disseram que ele teria de
ficar preso em Santa Maria para isso, mas não o chamam”, reclama.
Hoffmann acompanha notícias e fala com filhas por cartas
Enquanto espera por sua soltura, o empresário Mauro Hoffman tem acesso a
notícias sobre a tragédia via rádio e jornal. Segundo o seu advogado,
Mário Cipriani, o empresário está isolado, mas acompanha o que está
acontecendo fora dali enquanto prosseguem as investigações. Muito
abalado, ele também recebe atendimento médico e psicológico.
“O Mauro vem recebendo atendimento lá dentro. Ele segue muito abalado e
comovido e muito preocupado com as famílias das vítimas e também com a
dele. Ele consegue acompanhar o que vem acontecendo pela rádio e por
jornais, que não são do dia, mas que chegam lá. O que ele espera é que
tudo se esclareça o mais rápido possível”, conta o advogado.
Advogado de Hoffmann nega envolvimento dele
no incêndio (Foto: Emerson Souza/Agência RBS)
O empresário recebe a visita de familiares uma vez por semana, aos
domingos. A esposa é quem aparenta estar mais abalada com a situação. Os
irmãos de Mauro e a mãe também vão visitá-lo. Desde que teve a prisão
temporária decretada, ele não viu mais as filhas. Para preservar as
adolescentes, pediu que elas não frequentassem o presídio. A comunicação
é feita por cartas.
Quem mais encontra com Mauro é o advogado. No parlatório, conversam
sobre o andamento das investigações e a estratégia de defesa. O
empresário admite ser sócio da boate, mas nega culpa pela tragédia. O
que eles esperam é que Hoffmann seja liberado assim que a prisão
temporária expirar, no dia 3 de março.
“A nossa ansiedade é pela conclusão do inquérito. Temos a convicção que
o Mauro não teve participação nos fatos. Ele está confiante no trabalho
da polícia. Queremos que este fato se torne jurídico. Por enquanto,
está sendo tudo menos isso, mas igualmente respeitamos”, conclui
Cipriani.
Vocalista da banda não quer falar sobre o assunto
Quando o advogado Omar Obregon vai à penitenciária visitar seu cliente,
Marcelo dos Santos, ele evita falar sobre o incêndio e apenas pergunta
como o vocalista tem passado os dias na prisão. “Ele está totalmente
fora de si. Nem estou mais falando com ele sobre o assunto. Nas últimas
visitas que eu fiz, só perguntei para ele como ele estava”, diz.
O advogado afirma que passar por esta situação jamais esteve nos planos
do vocalista da banda Gurizada Fandangueira. “Ele era um sujeito que
sequer temperava a salada para não ser pego no bafômetro. Nunca teve um
processo contra ele. Aí foi trabalhar e voltou preso”, lamenta o
advogado.
Show pirotécnico da banda Gurizada Fandangueira
no palco da boate deu início ao incêndio, apontam
as investigações da polícia (Foto: Arquivo pessoal)
Santos toma sol meia hora por dia, nos dias em que pode deixar a cela,
conta Obregon. Nos horários de visita, ele recebe os pais. As filhas,
que são crianças pequenas, não vê desde que foi preso. A perda do
emprego de azulejista não incomoda mais do que o espera pela frente.
“Ele certamente será demitido, mas este é o menor dos problemas”, diz.
Ao contrário dos empresários, que estão isolados, Marcelo tem alguém
com quem conversar na cadeia, já que está preso na mesma cela de Luciano
Bonilha Leão, o produtor da banda. Os dois estão presos sob suspeita de
responsabilidade no incêndio: o primeiro teria feito uso do artefato
pirotécnico, acionado remotamente pelo produtor. Faíscas atingiram a
espuma que funcionava de isolante acústico no teto e deflagraram o fogo.
“Neste ponto, isso ajuda, porque são conhecidos”.
Preso, produtor da banda perdeu maior fonte de renda
Luciano Bonilha Leão perdeu sua maior fonte de renda. O produtor da
banda Gurizada Fandangueira trabalhava como motoboy em Santa Maria. Na
banda, Leão ajudava os amigos no transporte dos instrumentos e preparava
o palco para os shows. Segundo seu advogado, ele segue transtornado com
todo o corrido e aguarda pelo relaxamento da pena.
“Estamos aguardando as investigações. O Luciano é um cara normal, é
estranho para ele ir parar em um presídio. Não estava preparado. Eles
faziam os shows seguidamente, era uma coisa cotidiana, foi algo
inesperado, não tinha como imaginar isso”, conta o advogado Gilberto
Carlos Weber.
O defensor visita seu cliente com frequência na prisão. Luciano está em
uma ala separada da Penitenciária Estadual de Santa Maria. Fora da vida
normal, não pode exercer a profissão de motoboy, maior fonte de renda
para ele. “Trabalhava como motoboy em uma empresa de prestação de
serviços. Era autônomo. Tem situações mais importantes para ver agora,
depois ele vai ter que ver como vai ficar a profissão dele”, diz o
advogado.
Baterista passou a tocar em igreja e trabalha como taxista
Tocar bateria, um dos maiores hobbies de Eliel de Lima, virou
praticamente coisa do passado. O músico, que frequentemente era
convidado para tocar com a banda Gurizada Fandangueira, perdeu o seu
instrumento no incêndio da boate Kiss. Além do prejuízo financeiro, a
tragédia também o afetou emocionalmente. Ele revela que não voltou mais a
tocar em festas. A velha companheira só o acompanha nos cultos da
igreja evangélica.
“Nunca mais toquei na noite, até pretendo voltar a tocar, mas tenho que
recuperar minhas coisas. Perdi minha bateria, custava uns R$ 4 mil.
Agora só tenho toco na igreja, sou evangélico e toco lá”, conta ele.
Incêndio na casa noturna de Santa Maria que vitimou
239 pessoas completa um mês nesta quarta-feira
(Foto: Germano Roratto/Agência RBS)
Mesmo sendo um trabalho esporádico, a banda era uma fonte de renda para
Eliel. Não a principal, mas ajudava a “pagar umas contas”. Com o fim da
Gurizada Fandangueira, ele ficou apenas com o táxi. Eliel é motorista
na cidade de Rosário do Sul, distante cerca de 155 quilômetros de Santa
Maria, e cumpre uma jornada de aproximadamente 10 horas de trabalho por
dia.
“Estou me virando, sou taxista. A banda era a ocupação no fim de
semana. Eu não ganhava muito, mas dava para pagar algumas contas. O táxi
sempre foi minha maior fonte de renda”, revela.
Eliel nota que a tragédia o fez mais conhecido na cidade. Os
passageiros rapidamente o conhecem e querem saber sobre o ocorrido na
boate. O taxista diz ter a consciência tranquila e cita que recebe o
apoio das pessoas. O assunto é inevitável, embora tenha lhe tirado
algumas noites de sono e tenha o levado ao médico.
“Muita gente reconhece, puxa assunto, nas primeiras semanas perguntavam
muito, queriam saber. Todo mundo me apoia, sou bem conhecido, o pessoal
me apoia por ter nascido de novo. Em casa, procuro nem pensar, já
sonhei bastante com isso. Não quis ficar em casa, procurei me ocupar,
para não pensar muito. Dias depois do incêndio cheguei a ir no médico,
pois estava com forte dor muscular, mas foi só isso”.
Apesar de considerar os companheiros de banda como amigos, Eliel não
voltou a fazer contato com os outros músicos. Em uma única vez ligou
para saber como estavam de saúde. Com Marcelo, vocalista da Gurizada,
que segue preso, nunca mais falou. O incêndio na boate matou o gaiteiro
da banda: em meio à confusão, Danilo Jaques não conseguiu sair da boate e
foi uma das vítimas.
Entenda
O incêndio na boate Kiss, em Santa Maria, região central do
Rio Grande do Sul,
deixou 239 mortos na madrugada de domingo, dia 27 de janeiro. O fogo
teve início durante a apresentação da banda Gurizada Fandangueira, que
fez uso de artefatos pirotécnicos no palco. De acordo com relatos de
sobreviventes e testemunhas, e das informações divulgadas até o momento
por investigadores:
- O vocalista
segurou um artefato pirotécnico aceso.
- Era
comum a utilização de fogos pelo grupo.
- A banda comprou um
sinalizador proibido.
- O extintor de incêndio
não funcionou.
- Havia
mais público do que a capacidade.
- A boate tinha apenas
um acesso para a rua.
- O alvará fornecido pelos Bombeiros
estava vencido.
- Mais de
180 corpos foram retirados dos banheiros.
- 90% das vítimas fatais tiveram
asfixia mecânica.
-
Equipamentos de gravação estavam no conserto.
(
Veja o que já se sabe e as perguntas a responder)